Criptografia Numaboa
A grande brincadeira de Trithemius
Sab 31 Jan 2009 22:35 |
- Detalhes
- Categoria: Criptoanálise
- Atualização: Domingo, 01 Fevereiro 2009 13:20
- Autor: vovó Vicki
- Acessos: 8683
Em 1499, Johannes Trithemius escreveu um controvertido livro críptico chamado Steganographia (que significa escrita oculta). Durante anos este livro circulou em forma de manuscrito antes de, finalmente, ser impresso em 1606 e depois ser colocado na lista oficial dos livros proibidos pela Igreja Católica em 1609. Imaginem só, naquela época em que por muito menos a Inquisição mandava queimar bruxos e bruxas na fogueira, ostensivamente Trithemius explicou como usar espíritos para enviar mensagens secretas. Espíritos, demônios ou apenas criptografia?
Para entender do que trata este artigo, leia antes O segredo do terceiro livro (Trithemius).
Os dois primeiros livros da trilogia da Steganographia contêm numerosos exemplos de alguns tipos de cifras simples. Por exemplo, na mensagem que começa com PARAMESIEL OSHURMI DELMUSON THAFLOIN PEANO CHARUSTREA MELANY LYAMUNTO..., a primeira palavra sem sentido indica o sistema criptográfico que está sendo utilizado. O decifrador, então, sabe como extrair cada letra de cada palavra, iniciando pela segunda palavra, para obter a mensagem em Latim: Sum tali cautela ut...
O Terceiro Livro
O Livro III contém principalmente tabelas de números, cujas colunas são identificadas por símbolos zodiacais e planetários, sugerindo que sejam dados astronômicos ou astrológicos. Diferentemente dos dois volumes anteriores, existem pouquíssimas indicações que ajudam a decifrar o conteúdo.
Durante séculos estudiosos discutiram se o terceiro livro da Steganographia, incompleto, continha qualquer mensagem cifrada. Muitos concluíram que o livro não guardava qualquer segredo criptográfico e que apenas descrevia operações mágicas, interessantes apenas para ocultistas.
Entretanto, o prefácio do Livro III começa anunciando o objetivo provocativo de apresentar um método de transmitir mensagens à distância sem o uso da palavra, de um livro ou de um mensageiro. Trithemius adverte neste prefácio que estava se expressando de forma deliberadamente obscura:
Isto eu fiz para homens de estudo e homens profundamente engajados com o estudo da mágica, de modo que, com a Graça de Deus, possa ser inteligível até um certo grau, enquanto que, por outro lado, para os casca-grossa comedores de nabo, possa permanecer um segredo escondido por todo o tempo e, para seus intelectos obtusos, ser um livro selado para todo o sempre.
Estas palavras provocativas fizeram com que Thomas Ernst, professor de Alemão do La Roche College em Pittsbrugh, e Jim Reeds, matemático do AT&T Labs em Florham Park, não resistissem em aceitar o desafio lançado há cinco séculos.
Apesar de muita pesquisa, não consegui encontrar nenhum dos textos originais de Ernst ou de Reeds. Encontrei uma referência à criptoanálise efetuada por Reeds no Cracking a Medieval Code, publicado em 4 de Maio de 1998 por Ivars Peterson, no site da Mathematical Association of America. Foi este texto que usei como referência para escrever este artigo.
As hipóteses de Reeds
"Ao receber uma fotocópia do Steganographia, decidi ver se poderia achar qualquer mensagem escondida no livro III", relembra Reeds no texto publicado no jornal Cryptologia. "Sabia que o Livro III provavelmente era um rascunho. Portanto, informações importantes poderiam estar faltando; a versão impressa, obviamente, não havia sido revisada pelo autor."
Ao mesmo tempo, Reeds comenta que "se o Livro III fosse algo como os Livros I e II, então provavelmente seria inútil tentar seguir as instruções dadas no texto. Além disto, eu poderia esperar que qualquer texto claro [decifrado] fosse curto e banal."
Reeds teve sorte. Suas suposições de que a cifra era numérica e de que as tabelas deveriam ser lidas em colunas verticais estavam corretas. Ele também imaginou que a tabela que acompanhava o prefácio deveria ser uma forma de chave, na qual linhas sucessivas descrevem blocos de 25 números especificando fórmulas de encriptação distintas que transforma letras em números.
Testando as hipóteses
Reeds começou transcrevendo a primeira tabela numérica. Transformou colunas em linhas, excluíu todos os cabeçalhos e dados que não aparecessem nas colunas originais e substituíu qualquer símbolo não numérico pelo sinal /. Veja abaixo um exemplo do resultado:
/ 644 650 629 650 645 635 646 636 632 646 639 634 641 642 649 642 648 638 634 647 632 630 642 633 648 650 655 626 650 644 638 633 635 642 632 640 637 643 638 634 / 669 675 654 675 670 660 675 661 651 671 664 659 666 667 674 667 673 663 659 672 657 655 667 658 673 675 660 651 675 669 663 658 660 667 637 665 662 668 663 659 / 694 700 679 700 695 685 696 686
Ele notou que as barras (/) dividiam os primeiros 160 números em quatro blocos, todos com 40 números. Além disto, quase todos os números de cada bloco ocupavam um determinado intervalo numérico.
Reeds então escreveu os quatro blocos de 40 números em quatro linhas, uma abaixo da outra, para verificar se havia alguma semelhança na estrutura das linhas:
644 650 629 650 645 635 646 636 632 646. . . 669 675 654 675 670 660 675 661 651 671. . . 694 700 679 700 695 685 696 686 632 696. . . 719 725 704 725 720 710 721 711 707 721. . .
Ele verificou que, com raras exceções, os números das colunas formadas têm uma diferença de 25 em relação ao número imediatamente superior.
"Apesar de ainda não saber da existência de uma cifra", diz Reeds, "estava claro, através da emergência deste padrão, que minhas hipóteses iniciais eram suficientemente verdadeiras, quanto à leitura por colunas e quanto à importância do número 25, para que eu pudesse continuar."
"E, se houvesse uma cifra, este achado com certeza seria devido à presença de quatro cópias de um isólogo: quatro cópias do mesmo texto claro, cifrado de modo diferente porém relacionado", continua ele. "Se eu descobrisse como ler estas partes do texto, cifradas com números entre 626 e 650, provavelmente poderia usar a mesma receita para ler as partes cifradas com números entre 651 e 675: simplesmente subtraindo 25 de cada número e procedendo da forma anterior."
Análise de frequência
Reeds resolveu checar a frequência de cada um dos 25 números diferentes de cada linha:
626 1 631 0 636 1 641 1 646 2 627 0 632 3 637 1 642 4 647 1 628 0 633 2 638 3 643 1 648 2 629 1 634 3 639 1 644 2 649 1 630 1 635 2 640 1 645 1 650 4
As frequências pareciam não uniformes, o que é suficiente para serem consistentes com um texto em Latim ou Alemão e não apenas um produto randômico.
Umas poucas experiências a mais revelaram que um alfabeto reverso de 22 letras aparentemente se encaixaria na distribuição da frequência observada: 650=A, 649=B e assim por diante, através de um alfabeto consistindo das letras A, B, C, D, E, F, G, H, I, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, U, X, Y, Z, além de três símbolos adicionais após o Z - arbitrariamente denominados alfa, beta e gama.
Testando a chave
Aplicando esta chave hipotética à primeira linha, o resultado foi:
gazafrequenslibicosduyitca?[gamma]agotriumphos
Sem sombra de dúvida, um texto pronunciável e com palavras em Latim. Começava a fazer sentido...
Algumas indicações adicionais ajudaram Reeds a desvendar o esquema que Trithemius havia usado. Por exemplo, o símbolo beta, na verdade, era a sequência sch, comum no Alemão. O que Reeds pensou ser o x, era w. Ele descobriu, então, que alfa era tz e gama era th.
"Um último golpe de sorte ajudou na identificação do alfabeto da cifra", disse Reeds. Ele fez uma pesquisa na Internet procurando pela frase de duas palavras gaza frequens. O resultado mostrou uma referência em Latim, Gaza frequens Libycos duxit Carthago triumphos..., o que acabou confirmando gama como th e indicou que a letra identificada por Reeds como y, na verdade era x.
A Cifra de Trithemius
As cifras do Livro III revelam-se como cifras de substituição numérica, com múltiplos equivalentes numéricos fornecidos para cada letra do texto claro, conclui Reeds.
Th | Sch | Tz | Z | X | W | U | T | S | R | Q | P | O | N | M | L | I | H | G | F | E | D | C | B | A |
01 | 02 | 03 | 04 | 05 | 06 | 07 | 08 | 09 | 10 | 11 | 12 | 13 | 14 | 15 | 16 | 17 | 18 | 19 | 20 | 21 | 22 | 23 | 24 | 25 |
26 | 27 | 28 | 29 | 30 | 31 | 32 | 33 | 34 | 35 | 36 | 37 | 38 | 39 | 40 | 41 | 42 | 43 | 44 | 45 | 46 | 47 | 48 | 49 | 50 |
51 | 52 | 53 | 54 | 55 | 56 | 57 | 58 | 59 | 60 | 61 | 62 | 63 | 64 | 65 | 66 | 67 | 68 | 69 | 70 | 71 | 72 | 73 | 74 | 75 |
76 | 77 | 78 | 79 | 80 | 81 | 82 | 83 | 84 | 85 | 86 | 87 | 88 | 89 | 90 | 91 | 92 | 93 | 94 | 95 | 96 | 97 | 98 | 99 | 00 |
O que foi que Trithemius cifrou que compensasse a briga que ele comprou? O texto acaba se revelando um tanto embolado, provavelmente indicando que algumas partes foram perdidas ao longo do tempo ou se perderam nas transcrições feitas à mão. Portanto, o texto disponível atualmente representa um pouco mais que uma coleção de fragmentos isolados de sentenças. Estes fragmentos não revelam nada de espantoso, apenas frases comuns em Latim ou Alemão. É claro que muitas delas têm o tempero próprio da irreverência de Trithemius, do tipo "o portador desta carta é um salafrário e um ladrão".
"O Livro III contém criptogramas", diz Reeds. "Tal como nos Livros I e II, eles estão camuflados e são apresentados num contexto de mágica angelical". Entretanto, a técnica criptográfica é diferente porque as letras são representadas por números, disfarçados como dados astrológicos, ao invés de estarem escondidas numa massa de letras maior.
Considerações finais
Trithemius deve ter escolhido a linguagem dos anjos não para promover mágica, mas como um atrativo para capturar o interesse do leitor. "Se foi isso", diz Reeds, "ele foi excepcionalmente bem sucedido, mesmo que tenha calculado mal como este livro seria recebido".
Para mim, pessoalmente, a irreverência e a astúcia de Trithemius foram uma agradável surpresa. Me desculpem os esotéricos, mas a brincadeira da "inteligência" planetária e da linguagem angelical ainda deve render boas risadas por mais 500 anos!