Laboratórios
O caso das observáveis
Sab 26 Fev 2005 15:12 |
- Detalhes
- Categoria: Laboratório de Física Quântica
- Atualização: Quinta, 14 Janeiro 2010 10:08
- Autor: Mendonça
- Acessos: 16967
Primeira Etapa
Na verdade, nessa primeira etapa, eu não precisei fazer muita coisa além de lembrar de alguns resultados matemáticos conhecidos. O primeiro deles é o importantíssimo teorema da decomposição espectral, TDE (não deixe que o nome te assuste, o teorema em si é muito simples).
Esse teorema era perfeito pra mim porque ele diz exatamente quais são os tipos de operadores que são diagonalizáveis. Segundo o TDE, qualquer operador Q que satisfaça a igualdade
pode ser diagonalizado, e não existe nenhum operador que não satisfaça essa igualdade e mesmo assim possa ser diagonalizado.
Lembre-se que o produto de matrizes geralmente não é comutativo, portanto a igualdade acima não é sempre satisfeita (como olhos acostumados a lidar com números podem levá-lo a acreditar). De fato, as matrizes que satisfazem a igualdade anterior são chamadas de matrizes normais – um péssimo nome, pois não é normal uma matriz ser normal.
Teoremas como esse são jóias da matemática, pois em uma só sentença eles dão as condições necessárias e suficientes para que uma certa propriedade seja obedecida. É fácil perceber que se o operador é hermitiano (Q = Q†), a igualdade acima é trivialmente satisfeita, mas eu não estava interessado nesse caso, e o teorema confirmava que, embora todo o operador hermitiano fosse diagonalizável, nem todo operador diagonalizável tinha que ser hermitiano.
Além disso, eu sabia que sempre existe uma forma de escrever um operador qualquer em termos de operadores hermitianos. Esse é um resultado muito útil, porque os matemáticos sabem muitas propriedades sobre os operadores hermitianos, e assim, de uma certa forma, essas propriedades podem ser estendidas a operadores não hermitianos. Esse segundo importante resultado se expressa assim:
Seja T um operador qualquer (não necessarimante hermitiano), a igualdade
é sempre possível para algum R e S hermitianos (R = R† e S = S†).
É claro que se S = 0, implica que T = R, e como R é hermitiano, T também o será. Portanto, a importância desse resultado para o meu problema é a de formalizar a condição de que os operadores selecionados não sejam hermitianos, isto é, eles têm que ser escritos na forma T = R + iS com , necessariamente.
Em termos matemáticos, o TDE e esse resultado resumem a minha "primeira etapa" à seguinte tarefa:
Problema: Encontrar o conjunto dos operadores T que podem ser escritos como R + iS, com e que satisfa¸cam a igualdade T †T = T T †.
Quando o problema fica assim escrito torna-se fácil resolvê-lo. De fato, a seguinte solução pode ser encontrada sem maiores dificuldades:
Solução: O conjunto procurado é constituído por todos operadores T que podem ser escritos como R + iS, com e [R, S] = 0.
O símbolo [R, S] é lido como o "comutador entre R e S". Como dissemos, as matrizes normalmente não comutam na multiplicação, e esse fato motiva a invenção dessa grandeza para quantificar essa "falta de comutatividade", ou seja, [R, S] = RS - SR. Se você pretende continuar lendo textos sobre física quântica, é bom memorizar desde já o que é um comutador, eles estão sempre aparecendo por aí.
No caso da solução acima, temos que [R, S] = 0, o que significa que as matrizes que representam os operadores R e S devem comutar, ou seja, tanto faz multiplicar a primeira pela segunda ou a segunda pela primeira que o resultado tem que ser o mesmo (se RS - SR = 0, então RS = SR ). Essa condição segue como consequência do TDE aplicado ao nosso problema, e não é nada além da restrição T †T = T T † na linguagem dos operadores R e S. Considerando bem sucedida a realização da primeira etapa, parti confiante para a segunda.
Segunda Etapa
Agora, só o que eu precisava era uma forma de extrair alguma informação sobre os autovalores do conjunto de operadores T que eu acabara de gerar. Se eu conseguisse inferir algo sobre eles, eu provavelmente poderia ter algum critério que me permitisse jogar fora os operadores T com autovalores complexos e manter apenas os que tivessem autovalores reais.
Nesse momento eu lembrei de um outro resultado maravilhoso sobre os autovetores de operadores que comutam (como R e S). O fato é que se dois operadores comutam, nós podemos afirmar que os autovetores de um deles também são autovetores do outro (é claro que com autovalores diferentes, pois se os autovalores e os autovetores fossem os mesmos, os dois operadores seriam os mesmos).
Mais uma vez eu tinha nas mãos um resultado que vinha totalmente a calhar ("os deuses estão a meu favor", eu pensava...). Como R e S tinham que comutar, eu sabia que os autovetores de um eram também autovetores do outro, além disso, como R e S eram hermitianos (por construção), eu sabia que eles podiam ser diagonalizados e que seus autovalores eram reais. Imediatamente eu os representei como
com r1, r2, · · · (autovalores de R) e s1, s2, · · · (autovalores de S) todos reais!
Note que as representações de cada operador acima são diagonais; mais do que isso, os dois operadores são diagonais na mesma base. As "· · ·" indicam que, de forma geral, podemos estender essa representação a tantos termos quantas forem as dimensões dos operadores com que estamos trabalhando. Para evitar mais novidade (acho que já tivemos bastante para um texto só), vamos assumir que nossos operadores são sempre representados por matrizes 2 × 2 (2 linhas por 2 colunas). Nesse caso, cada operador só tem dois autovalores (r1 e r2 para R; s1 e s2 para S) e dois autovetores (|v1
Essas representações para R e S me asseguravam que os operadores comutavam entre si (afinal, ela foi construída baseada nesse fato), e além disso ela possibilitava introduzir os autovalores explicitamente na jogada. Para concluir a boa maré, eu sabia como relacionar os autovalores de R e S com os autovalores de T , e eles eram simplesmente r1 + is1 e r2 + is2 (algo que eu podia extrair da relação T = R + iS).
Pois então eu tinha tudo que precisava para cumprir o meu propósito de eliminar os operadores T com autovalores complexos. Bastava impor que s1 = s2 = 0, assim os autovalores de T seriam sempre reais, porque r1 e r2 são sempre reais... Foi quando eu cheguei a essa conclusão que o meu mundo ruiu.
Tomando s1 = s2 = 0, fica claro pela equação (19) que S = 0. Mas na primeira etapa eu tinha concluído que se S fosse zero, o operador T seria hermitiano, e isso eu não queria. Em outras palavras, para ser coerente com a primeira etapa, ao eliminar os operadores de autovalor complexo, eu estava eliminando todos os operadores do conjunto, pois nele só existiam operadores com s1 ou s2 não nulos simultaneamente. Com isso cheguei ao triste resultado de que não existe nenhum operador diagonalizável de autovalores reais além dos hermitianos, eis a razão de eu não ter conhecido a Suécia (e nem a cor dos 1 milhão de dólares do prêmio Nobel).
Concluindo, existem vários operadores não hermitianos que podem ser diagonalizados, assim como existem vários operadores não hermitianos que tem autovalores reais, o problema é que quando você exige que eles tenham as duas coisas juntas, não sobra ninguém! Ou melhor, sobram os hermitianos, se você não teve preconceito contra eles e tentou excluí-los de antemão.
Foi assim que eu perdi meu preconceito contra os operadores hermitianos e reconheci que eles realmente mereciam representar, sozinhos, as observáveis. Esse foi um dos meus primeiros "revolucionários projetos de pesquisa" que resultaram numa comédia científica. Eu espero que esse meu delírio sirva pelo menos para mostrar como pode ser divertido tentar fazer ciência! (e acima de tudo, como é difícil ganhar o prêmio Nobel!)
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