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Laboratórios

O caso das observáveis

Sab

26

Fev

2005


15:12

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4. Eu X Observáveis

Vamos começar essa narrativa enunciando o postulado das observáveis:

Postulado 4: Observável

Uma observável é uma propriedade de um sistema físico que pode, em princípio, ser medida. Na física quântica as observáveis são operadores hermitianos.

O primeiro aspecto que salta aos olhos é a presença do postulado da medida dentro do postulado da observáavel. Se você não percebeu que ele está lá, leia novamente e note que a definição de o que é uma observável está intimamente relacionada com o que esperamos obter como resultado de uma medida. Por causa dessa relação, vamos recordar o postulado da medida, porém agora usando a linguagem mais elaborada que acaba de lhe ser apresentada:

Postulado 3: Medida (revisitado)

Quando uma certa observável de um sistema físico é medida, o resultado é sempre um de seus autovalores (não é possível prever qual autovalor resultará, o melhor que podemos fazer é calcular as probabilidades de obter um determinado autovalor). O estado do sistema é instantaneamente colapsado para o autovetor correspondente ao autovalor selecionado pelo processo de medida.

O que o postulado da medida nos diz então (e agora nós conseguimos contemplá-lo de forma mais precisa), é que os autovalores e os autovetores não são apenas uma ferramenta de simplificar as contas com matrizes na física quântica. Sua importância transcende tudo isso, pois de alguma forma misteriosa, a natureza sempre decide por tomá-los como resultados do processo de medida.

Infelizmente não podíamos enunciar essa forma do postulado da medida desde o princípio. Há alguns textos atrás soaria desnecessariamente confuso introduzir o jargão dos autovalores e autovetores. Agora, a expectativa é justamente a oposta. Essa nova versão do postulado da medida deve soar como música para os seus ouvidos, pois além de termos nomes próprios para as entidades que interessam ao processo de medida, sabemos exatamente o que esses nomes significam num contexto independente da física quântica.

Assim como o postulado das observáveis fala de medida, o postulado de medida fala de observáveis, e talvez esse último diga mais sobre elas do que o primeiro. Vamos analisar qual a informação subjacente no postulado da medida sobre a natureza de uma observável.

Em primeiro lugar, se os resultados das medidas são os autovalores das observáveis, nós devemos exigir que elas tenham autovalores reais. Essa exigência matemática nos assegura que ninguém vai medir, por exemplo, uma energia de (5+3i)kWh para um qubit (e assim os físicos podem dormir em paz, sem ter pesadelos com os significado de "energias imaginárias"; por outro lado, muitos místicos adorariam sonhar com energias assim...).

Além disso, porque o estado do sistema colapsa sempre para o autovetor associado ao autovalor resultante da medida, seria perfeito se a observável pudesse ser diagonalizada, dando origem a algo da forma

Image

onde |v1

Se assim fosse, quando o ponteiro do medidor indicasse o resultado λ1, teríamos certeza de que o estado do sistema passou a ser |v1

Nem todos os operadores tem autovalores reais, e nem todos os operadores são diagonalizáveis! Por exemplo, o operador

Image

tem autovalores λ1 = i - 1 e λ2 = i + 2 e autovetores |v1

Image

visivelmente os autovalores são complexos, e o operador reescrito na base de seus autovetores leva a:

Image

Ainda que o aparato soubesse medir algo complexo (e nós soubéssemos interpretar o significado disso), como poderíamos saber pra qual estado o sistema colapsou? Esse operador não fica diagonal mesmo quando colocado na base dos autovetores. Operadores como esse não podem ser observáveis.

Quando tomamos um operador hermitiano, coisas como essas nunca acontecem. Isso porque é possível mostrar que todos operadores hermitianos têm autovalores reais e são diagonalizáveis, ou seja, eles são perfeitos para os propósitos das medidas. É por essa razão que o postulado da observável seleciona matrizes hermitianas para representá-las, pois assim as medidas podem ser realizadas consistentemente.

Contra esses fatos não há argumentos. Realmente os operadores hermitianos atendem a todas as exigências para que as medidas sejam bem sucedidas, mas isso não garante que só eles tenham essas características. De fato, era essa exclusividade ditada pelo postulado das observáveis ("só os operadores hermitianos podem ser observáveis") que me incomodava. Por isso eu me determinei a encontrar outros operadores, além dos hermitianos, que atendessem às expectativas do postulado da medida.

Eu sabia que qualquer matriz hermitiana de 2 dimensões pode ser escrita na forma

Image

onde a, b, c e d são números reais quaisquer. Uma matriz hermitiana só pode ter números complexos fora da diagonal, e mesmo assim os termos simétricos devem ser complexos conjugados entre si (b+ic e b-ic são complexos conjugados porque são iguais a menos do sinal da parte imaginária). Mais abstratamente, um operador A é hermitiano se, e somente se, ele é igual a seu operador adjunto, ou seja

lembrando que para obter a representação matricial do operador adjunto A† basta transpor a representação matricial de A e complexo-conjugar todos os seus elementos (isto é, trocar o sinal de i, caso haja algum i). É fácil notar que a forma geral da equação (17) satisfaz a essa igualdade, enquanto que o operador O de nosso exemplo não satisfaz.

Olhando para algumas matrizes, eu comecei a perceber que elas não precisavam ter a forma da equação (17) para ter autovalores reais, por exemplo, a matriz

Image

não tem a forma da equação (17): os termos fora da diagonal não são complexo conjugados, portanto esta matriz não é hermitiana, contudo ela tem autovalores Image, que são evidentemente números reais.

Mas só isso não é suficiente, para que uma matriz mereça o status de "potencial representação de uma observável" precisamos também da diagonalização. E não foi sem grande entusiasmo que, após algumas tentativas, eu também comecei a encontrar matrizes não hermitianas diagonalizáveis! Por exemplo, digamos que a matriz não hermitiana a seguir seja a representação de um certo operador na base {|0

Image

Escrita na base dos autovetores, ela tomaria a forma

Image

que é obviamente diagonal.

Frente a esses achados, eu criei meu projeto particular de pesquisa, baseado em 3 etapas

  • 1. Encontrar o conjunto de todas as matrizes não-hermitianas diagonalizáveis;
  • 2. Eliminar desse conjunto as matrizes que tivessem autovalores complexos (assim restariam apenas as matrizes não-hermitianas de autovalores reais e diagonalizáveis);
  • 3. Ir para Estocolmo receber o prêmio Nobel de Física pela minha inestimável contribuição aos fundamentos da teoria quântica.

As duas primeiras etapas não pareciam nada impossíveis, e na verdade eu pude concluí-las rapidamente... Infelizmente o resultado que eu vislumbrei quando terminei a segunda me impediu de começar a terceira.

No que se segue eu mostro exatamente o que foi que eu fiz na primeira e segunda etapa, assim, quando você terminar de seguir meu raciocínio, você entenderá porque eu não fui para a Suécia.

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