Laboratórios
O caso das observáveis
Sab 26 Fev 2005 15:12 |
- Detalhes
- Categoria: Laboratório de Física Quântica
- Atualização: Quinta, 14 Janeiro 2010 10:08
- Autor: Mendonça
- Acessos: 17033
1. Introdução
Nos últimos textos, apresentamos e discutimos três postulados (estados, evolução e medida) e alertamos que eles não eram tudo o que havia para a física quântica. De fato não são mesmo, e embora tenhamos conseguido mostrar alguns resultados importantes usando só os três, devemos ainda introduzir o postulado das observáveis para completar a descrição da física quântica. É isso que faremos neste artigo.
Basicamente, o postulado das observáveis nos ensina o que pode ser medido num sistema quântico, e como essas grandezas devem ser representadas. Assim sendo, energia, momentum linear (algo bastante semelhante à velocidade), posição etc., são chamadas de observáveis da física quântica. É claro que o postulado não serve apenas pra dar um nome para o que podemos medir, mas o que é mais importante, ele ensina como essas tais observáveis se expressam matematicamente.
Uma observável é um operador (já vimos alguns operadores antes: o operador de evolução temporal, o operador de Hadamard, etc...), e como sabemos, esses podem ser representados por matrizes. A importância desse postulado é ditar que a cara das matrizes que representam observáveis tem que ser de um certo tipo: hermitianas (veremos o que isso significa depois, por enquanto tenha em mente que essa é uma restrição bastante forte; o que dissemos uma vez para matrizes unitárias vale aqui também para as matrizes hermitianas: se você sortear uma matriz de uma urna contendo todas as matrizes, a probabilidade de sair uma hermitiana é muito remota).
Eu vivi uma história interessante com relação a esse postulado quando fomos apresentados. Na época, eu questionava se ele era realmente necessário. Meu plano era mostrar que a hermiticidade das observáveis era um vínculo desnecessariamente forte, portanto poderíamos relaxar um pouco nele e ainda assim ter uma teoria consistente... Bem, se eu estivesse certo, eu certamente seria um sujeito famoso nesse momento, talvez até um prêmio Nobel de física (afinal eu teria balançado as estruturas da física quântica). Como isso não aconteceu, você pode ter certeza que eu estava delirando.
O fato de eu ter deixado a apresentação desse postulado por último foi motivado na idéia de contar esse delírio com todos detalhes, e principalmente como eu finalmente caí na real. É desnecessário dizer que eu não ganhei o Nobel (!), mas pelo menos aprendi bastante sobre a importância desse postulado (é um consolo...).
Contudo, para que essa "emocionante história" possa atingí-lo, preciso antes introduzir mais alguns conceitos matemáticos. Nesse caso eu realmente não sei como evitá-los, mas vou fazer todo o possível para dar alguma intuição a respeito deles, evitando que a coisa toda fique vaga demais.
Finalmente, é bom destacar que a leitura dos textos anteriores é bastante desejável (talvez necessária) para que este artigo faça sentido. Então é isso, vamos às preliminares do "caso das observáveis".
2. Operadores e suas representações
Por algumas vezes dissemos que os operadores da física quântica, como por exemplo a porta lógica de Hadamard (veja o artigo sobre o Algoritmo de Deutsch), podem ser representados através de matrizes. Todavia, na hora de escrever o operador de Hadamard, terminamos apresentando
o que realmente em nada se parece com uma matriz, embora deixe claro qual é o papel da operação de Hadamard sobre os estados |0
Em primeiro lugar, cabe uma rápida discussão para justificar que a representação acima realmente retrata o operador de Hadamard. Alguém poderia desconfiar do fato de que apenas mostramos o que esse operador faz quando aplicado aos estados |0
Uma base é como um sistema de coordenadas utilizado para localizar um ponto do espaço. Na superfície do planeta Terra, por exemplo, é possível localizar qualquer ponto informando apenas dois números: a latitude e a longitude, ou seja, a distância angular do ponto à linha do equador e ao meridiano de Greenwich, respectivamente. Dizemos que essas linhas imaginárias formam uma base. Na física quântica o espaço de Hilbert faz o papel do planeta, e os estados do sistema (os kets) são como os pontos sobre a Terra. Para entender como {|0produto escalar. Portanto, quando dizemos que {|0
Por essa razão, conhecer o papel do operador de Hadamard apenas nos estados da base é suficiente para conhecer o seu papel em qualquer estado; afinal, todo estado pode ser escrito em termos de |0
Para chegar na forma matricial da operação de Hadamard, vamos passar ainda por outras representações. é importante ter em mente que todas elas são equivalentes, e o uso de uma ou de outra é escolhido por mera conveniência ou hábito.
Para começar, escrevemos a representação abaixo que chamamos H1 (H para lembrar que estamos querendo representar Hadamard e 1 para indicar que essa é a nossa primeira forma de representação):
Comparando-se com a equação (1), percebe-se que simplesmente fizemos a soma dos produtos das saídas pelos bras (em vez dos kets) das correspondentes entradas (eis aqui uma situação em que é muito mais fácil entender uma coisa em "matematiquês" do que em português).
Como checar que H1 (equação 2) e Hadamard (equação 1) descrevem a mesma operação? Basta aplicar H1 às entradas de Hadamard, se as saídas forem as mesmas, saberemos que as representações são equivalentes. É exatamente isso que fazemos abaixo:
Somos obrigados a concordar que as saídas de H1 (lado direito das igualdades (3) e (4)) aparentemente nem lembram as saídas de Hadamard (lado direito das setas da equação (1)), mas isso é pura "ilusão de óptica". De fato, para verificar a equivalência precisamos entender o significado dos objetos <0| |0>, <1| |0>, <0| |1> e <1| |1>, mais comumente escritos como <0|0>, <1|0>, <0|1> e <1|1>, e conhecidos como (os já mencionados) produtos escalares.
O resultado de um produto escalar é sempre um número (embora ele seja realizado entre estados), e a magnitude desse número está associada à proximidade (ou semelhança) entre os estados envolvidos. Por exemplo, o produto escalar entre os estados |0<0|1>, e a magnitude do resultado diz quanto um estado se parece com o outro. Nesse caso, em particular, vimos que |0<0|1> = 0 (essa é uma forma bastante questionável de se realizar um produto escalar, mas por enquanto ela serve bem, então ficamos com ela).
Pelos mesmos argumentos, é imediato perceber que <1|0> = 0 (se a cara não se parece em nada com a coroa, a coroa também não tem nada a ver com a cara!). Quando perguntamos o quanto a cara parece com a cara, e o quanto a coroa parece com a coroa, naturalmente respondemos que elas são "absolutamente iguais". Tomados alguns cuidados com a normalização dos estados, ser "absolutamente igual" significa ter produto escalar 1 (pense nisso como 100% parecidos), portanto <0|0> = 1 e <1|1> = 1.
Com isso, podemos imediatamente re-escrever as últimas equações como
ficando explícita a equivalência entre H1 e Hadamard.
Agora que sabemos que está tudo certo com a forma da equação (2) para a representação de Hadamard, vamos tentar melhorá-la um pouco usando a propriedade distributiva da multiplicação (isto é, eliminando os parênteses):
Vamos guardar essa forma mais compacta como sendo a representação denominada H1. Esse é o momento para sugerir uma nova representação para Hadamard (ou para H1). Considere H2 como a nossa segunda tentativa
Finalmente começamos a ver matrizes aparecerem por aqui, mas como acreditar que H2 é também uma representação equivalente à de Hadamard? Uma vez que vimos que H1 é equivalente a Hadamard, basta mostrarmos que H2 é equivalente a H1.
A equivalência entre H2 e H1 é obtida efetuando-se os produtos matriciais, o que fazemos passo a passo, primeiro multiplicando a segunda matriz pela terceira, e depois a primeira pelo resultado do produto anterior (poderíamos também ter multiplicado a primeira matriz pela segunda e depois o resultado pela terceira – o produto de matrizes é associativo!).
Salta aos olhos que o resultado é o próprio H1, portanto a forma matricial da equação (8) é também equivalente a Hadamard!
Talvez você esteja desapontado porque o operador não é representado por uma matriz, como havíamos prometido, mas sim um produto de três matrizes! O que acontece é que, se concordarmos previamente qual é a base que estamos usando para representar o operador (sim, há várias bases possíveis), não é necessário escrever as matrizes de 1 fila. Isso é o que se faz normalmente. Dizemos que o operador H3 abaixo está escrito na base {|0
Essa única matriz, juntamente com um pequeno texto do tipo "a base é {|0
Suponha que exista uma outra base {|a
onde i é a constante imaginária . Uma representação do tipo H1 para o operador de Hadamard na base {|a
onde usamos o símbolo ' para denotar que esse nosso tipo de representação está sendo feito na base {|ai).
Mantendo em mente que agora a base que estamos usando para representar o operador é {|a
um resultado que não lembra em nada a matriz da equação (9), mas que representa o mesmo operador: Hadamard.
Tudo isso é importante para mostrar que um mesmo operador tem várias apresentações, como um remédio que você pode comprar em cápsulas, comprimidos, supositórios, injetável, etc... mas seja lá qual for a forma de sua preferência, o fabricante garante que, se corretamente usado, os resultados devem sempre ser os mesmos.
Na física quântica as apresentações também devem ser corretamente usadas, ou seja, quando você opta por uma delas deve ter em mente as implicações da sua opção. Por exemplo, se você usar a representação de 1 matriz, deve lembrar que nessa representação a expressão explícita da base foi arrancada para "aliviar a notação", por isso, para que essa representação tenha significado, é necessário deixar bem claro no texto qual foi a base que você atropelou.
Concluindo, quando falamos em um operador, estamos nos referindo a um objeto abstrato quanto a forma, mas de significado muito bem determinado. Quando falamos em matrizes (ou outras representações de um operador), trazemos aquele conceito puro para um terreno concreto (algo que você pode usar para fazer contas), pagando o preço de ter que introduzir uma base. Independente da sua escolha de tipo de representação, a base em que o operador está sendo representado tem sempre que aparecer. Isso acontece naturalmente em representações como as das equações (1), (7) e (8). Mas para a representação da equação (9), é necessário indicar a base no texto.
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