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Laboratórios

Três regras para a Física Quântica

Qui

18

Nov

2004


22:00

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1. AS REGRAS DA FÍSICA QUÂNTICA

Chegou a hora de dizer quais regras são essas que a física quântica impõe sobre as tentativas dos físicos em descrever a natureza. Como mostra a definição, a física quântica é um fundamento matemático, e portanto as regras têm um forte apelo matemático.

Nessa primeira apresentação dos postulados, eu vou tentar suprimir toda a matemática que eu conseguir, mantendo o estritamente necessário para entender o algoritmo de Deutsch (no futuro, teremos a oportunidade de fazer o inverso: colocar toda a matemática envolvida e entender porque cada nuance matemática é importante).

Mesmo assim, não nos livramos de toda a matemática, mas o que resta dela é realmente elementar, tipicamente coberto nos cursos do ensino médio. Por isso, na exposição que se segue, eu assumo conhecidos para o leitor os conceitos de matrizes, multiplicação de matrizes e números complexos.

1.1 Postulado 1 - ESTADO

O estado de um sistema físico fechado é totalmente descrito por uma matriz de n linhas e 1 coluna preenchida com números complexos. Além disso, os números complexos devem ser tais que se somarmos os módulos elevados ao quadrado de todos os elementos da matriz, o resultado deve ser igual a 1.

Se isso soou confuso, vamos tentar esclarecer.

O primeiro ponto a ser discutido vem já nas primeiras palavras do postulado: o que é que se quer dizer com estado de um sistema físico? Essa é uma ótima pergunta! A resposta padrão é que o estado é a representação do que um observador conhece sobre o sistema em questão. Toda vez que falarmos em estado, é a esse conceito que estaremos nos referindo, porém, vale destacar que, como muitos conceitos da física quântica, essa noção de estado é bastante polêmica (no futuro deveremos ter a oportunidade de entender o por que).

E o que é um sistema físico fechado? A palavra fechado aparece para frisar que o sistema está isolado do resto do universo, ou seja, ele não interage com o ambiente ou com qualquer outro sistema que se encontre em suas vizinhanças. É verdade que essa é uma hipótese difícil de aceitar, mas em muitos casos a interação de um sistema com o ambiente é realmente desprezível, validando a aproximação de sistema fechado. De qualquer forma, a física quântica também se ocupa do estudo de sistemas abertos, mas essa é uma outra história.

Agora vem a parte mais fácil. O estado do sistema é descrito por uma matriz-coluna de números complexos, tais que a soma dos módulos ao quadrado de todos os elementos é igual a 1, ou seja, se chamarmos o estado do sistema de V, podemos representá-lo por

Image

Nota sobre notação: Numa matriz V, os elementos são representados por Vij, onde i indica o número da linha (filas horizontais) e j o número da coluna (filas verticais) em que o elemento se encontra, determinando inequivocamente sua posição. Numa matriz-coluna, obviamente todos os j serão iguais a 1, como mostrado acima. Nossa matriz-coluna tem, a priori, um número indeterminado de linhas, por isso fizemos o indíce i variar de 1 até n (onde n é um número inteiro e positivo qualquer). Os elementos intermediários estão representados por Image e por ··· . Por razões que ficarão claras mais adiante, os elementos dessa matriz-coluna são chamados de amplitudes de probabilidade.

O número de elementos da matriz-coluna acima (n) varia dependendo do quão complicado é o sistema em questão, e normalmente dá-se a ele o nome de dimensão ou grau de liberdade.

Temos aqui já uma razoável quantidade de informação para digerir; um exemplo seria providencial para incorporar todos esse conceitos. Mas se você pensar um pouco, vai concluir que, nesse caso, não é tão simples conseguir um exemplo para esclarecer as coisas. Isso porque um exemplo tem a função de trazer para o terreno conhecido um assunto desconhecido. E este é todo o nosso problema aqui: como vamos trazer para um terreno conhecido uma teoria desenvolvida para descrever fenômenos que não experimentamos, isto é, desconhecidos à nossa percepção? Nesse caso um exemplo tem tudo para não dar certo, mas vamos tentar mesmo assim...

Vamos descrever o resultado do lançamento de uma moeda, um fenômeno inquestionavelmente clássico (para o qual temos bastante intuição). Para isso, vamos usar o que foi estabelecido no primeiro postulado da física quântica.

Depois que a moeda cai e pára de rodopiar, o nosso conhecimento sobre o sistema consiste em saber se a face exposta é cara ou coroa. De acordo com o primeiro postulado, isso pode ser representado através de matrizes-coluna, por exemplo:

Image

Essa representação deixa claro que o número de cima da matriz se relaciona com a probabilidade do resultado ser cara, e o número de baixo com a probabilidade do resultado ser coroa. Assim, um resultado cara é 100% cara e 0% coroa, e o resultado coroa é 0% cara e 100% coroa.

Note que, nesse caso, somente 2 dimensões foram suficientes para descrever o estado da moeda (se estivéssemos descrevendo um dado, precisaríamos de 6 elementos na matriz, ou seja, 6 dimensões). Além disso, é fácil verificar que nossas matrizes respeitam a condição de normalização do primeiro postulado, isto é: a soma dos módulos ao quadrado de todos os elementos da matriz dá 1, afinal

Image

Até aqui, ao contrário do que esperávamos, nosso exemplo vem se mostrando um sucesso! Vamos aproveitar a boa maré para levá-lo um pouco mais adiante.

Considere agora que aquela mesma moeda foi colocada numa caixa hermeticamente fechada, tal que você não possa mais vê-la. Você sacode a caixa e então se pergunta: como eu vou descrever o estado dessa moeda lá dentro da caixa?

Agora você não sabe se o resultado foi cara ou coroa, mas não há dúvida de que foi uma coisa ou outra. Embora possa parecer que não, mesmo nesse caso você tem alguma informação sobre o sistema: considerando que a moeda não era viciada, é tão provável que o resultado seja cara quanto coroa. Logo, devemos ser capazes de escrever um estado para essa moeda. Como seria esse estado?

Naturalmente ele tem o mesmo número nos dois elementos de matriz, pois a cara é tão provável quanto a coroa. O número que satisfaz a condição de normalização é Image, e portanto o estado deve ser

Image

Significando que o resultado foi cara com 50% de probabilidade, ou coroa com os outros 50%; ou, o que é equivalente, se você repetir o experimento um número enorme de vezes, metade das vezes você vai obter cara e na outra metade coroa (note que a probabilidade é o módulo da amplitude de probabilidade elevado ao quadrado: Image

Ora, você deve estar pensando, o que tem de novo nisso? Tudo o que foi dito parece não passar de uma linguagem elaborada para descrever uma situação corriqueira e sem nenhum atrativo. Qual é a novidade desse tal de primeiro postulado então? Por que o exemplo está funcionando tão bem, ao contrário do que esperávamos?

Realmente o exemplo ilustra muito bem a construção das matrizes representantes do estado, mas não basta construir as matrizes se você não aprecia o significado do seu resultado. Para que eu possa deixar mais claro aonde estou querendo chegar, vamos dar uma olhada mais atenta para a equação (5). Várias leituras podem ser feitas sobre um objeto como este isoladamente, e certamente a leitura clássica que fizemos é válida, mas não única.

Como dissemos, aquele estado indica que numa repetição do mesmo experimento os resultados se dividirão igualmente entre cara e coroa. Mas ele também não poderia indicar que o resultado foi cara e coroa, simultaneamente? (permita-se pensar que esse é um resultado possível, como você o representaria na forma de estado?). Você talvez esteja pensando que é loucura levantar uma hipótese como essa, mas é exatamente essa a leitura que a física quântica faz para estados como este.

Não é surpresa que pareça loucura, afinal nós não vemos moedas darem carem e coroa por aí. Como eu havia dito, o exemplo não podia funcionar direito – em algum momento alguma coisa estranha iria acontecer. Na verdade essa coisa só é estranha porque estamos falando de moedas, mas no mundo microscópico esse comportamento é normal! São os chamados estados de superposição, que como veremos, são fundamentais para o Algoritmo de Deutsch, e talvez a maior de todas as novidade da física quântica (e elas só estão começando)

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