Biblioteca da Aldeia
Meu zeloso guardador
Seg 2 Jun 2008 20:30 |
- Detalhes
- Categoria: Biblioteca
- Atualização: Terça, 24 Fevereiro 2009 11:44
- Autor: Veríssimo
- Acessos: 8510
No outro dia estive conversando com com meu anjo da guarda. Há tempo não nos falávamos. Na verdade, na última vez que me dirigira a ele eu tinha uns 7 ou 8 anos. Começamos a conversa lembrando aquele tempo.
- Como era mesmo que eu dizia? "Santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador..."
Ele sorriu.
- É. Todas as noites, antes de dormir. E sempre terminava me pedindo para proteger toda a sua família, os amigos, os vizinhos e o dr. Getúlio Vargas.
- O dr. Getúlio Vargas?
- O dr. Getúlio Vargas.
- Faz tempo, né?
- Foi você que não quis mais falar comigo. Eu continuei ouvindo.
- Pois é. Perdi a fé. Não acreditava mais em você. Aliás, continuo não acreditando.
- Tudo bem. Não é razão para não conversarmos. Eu não tenho preconceito.
- Teve uma coisa que sempre me intrigou: você, se existisse, seria o meu guardador particular, ou cada anjo cuidaria de várias pessoas ao mesmo tempo? Isso explicaria o fato de tantos morrerem fora de hora enquanto outros sobrevivem. Anjos da guarda sobrecarregados.
- Não, não. Minhas instruções são cuidar de você com exclusividade. Dedicação integral. Sete por 24, sem folga nos fins de semana.
- E quando uma pessoa morresse, seu anjo da guarda passaria a cuidar de outro, de um recém-nascido, ou também desapareceria?
- Depende. Normalmente os anjos da guarda são encarregados de outra missão assim que o seu designado morre. Mas os que tiveram de zelar por pessoas em profissão de alto risco, ou amantes de esportes radicais, são aposentados. Ou passam por um período de recuperação do sistema nervoso antes de voltarem ao batente.
- Eu não lhe dei muito trabalho, dei? Tive uma vida pacata...
- Bom, precisei intervir algumas vezes. Esta você nem vai se lembrar. Ainda garoto, você foi soltar um foguete e não se deu conta de que estava apontando o lado errado para cima. Se não fosse eu cochichar "Vira! Vira!" no seu ouvido, no último minuto, o rojão teria entrado no seu peito. Teve aquela vez em que a casa estava em obras e você, molhado de um banho de mangueira, tocou num fio desencapado e só não morreu eletrocutado porque eu puxei você a tempo. E lembra quando você foi fazer aquele exame com cateter, um trombo se soltou na corrente sanguínea e paralisou o seu lado esquerdo, e tiveram que fazer uma sangria de emergência?
Você pode me dizer qual é a minha hora marcada?
- Lembro. Eu sempre digo que sei como será a morte, porque meu dedão esquerdo já morreu e foi ressuscitado.
- Fui eu que providenciei o socorro rápido. Outra vez você estava num avião que saía do Galeão para Porto Alegre e a decolagem teve que ser abortada na metade da pista. Poderia ter sido uma tragédia se não fosse a minha intervenção. No caso, intervi para salvar o seu ego, já que todo o time do Flamengo estava no avião e o seu nome só sairia nos jornais sob "Também morreram..." E também porque não era a sua hora.
- Mas fora isso...
- Fora isso, não tenho do que me queixar. Foi uma missão tranqüila.
- Você disse que interveio porque não era a minha hora. Quer dizer que você sabe qual será a minha hora de morrer?
- Bom, sim e não. Nos dão uma planilha com a hora prevista para a morte do nosso protegido. Temos ordens de fazer cumprir a previsão, na medida do possível. Mas a pessoa pode não colaborar. Pode se expor a riscos desnecessários, pode até se matar. E sempre há a possibilidade de um imprevisto atrapalhar todos os planos. Como um rojão no peito, por exemplo.
- Você pode me dizer qual é a minha hora marcada? Só por curiosidade.
- Desculpe. Não posso. E se você não acredita em mim, porque acreditaria no que eu diria?
- Tem razão. De qualquer forma, você me manteve vivo e razoavelmente intacto.
- É, acho que me saí bem.
- Claro que sim. Senão nós não estaríamos aqui, tendo esta conversa imaginária. Obrigado, viu?
- Quié isso. Eu só estava fazendo meu serviço.
- Foi bom falar com você, depois de tantos anos.
- Também gostei da nossa conversa. Tchau. Se cuide.
- Pode deixar.
- Você não quer encerrar com um pedido, como fazia antigamente, quando acreditava?
- Quero! Apesar de não serem da sua jurisdição, proteja toda a minha família, todos os meus amigos, todos os brasileiros...
- E o Lula?
- E o Lula e seu ministério.
- Amém?
- Amém.
Publicado no Caderno de Cultura do jornal O Estado de São Paulo em 25 de Maio de 2008.