Biblioteca da Aldeia
O Apagão
Sex 7 Set 2007 17:58 |
- Detalhes
- Categoria: Biblioteca
- Atualização: Segunda, 02 Junho 2008 21:38
- Autor: Jabor
- Acessos: 9895
Lá pelos idos de 2001 publiquei na Aldeia um artigo do Jabor falando sobre o apagão. Sei que já faz muito tempo, mas, como a história se repete, uma nova crise energética se aproxima e, para variar, todo mundo fica olhando no que vai dar ao invés de agir. A notícia ruim é que precisamos contar com novos apagões. A notícia boa é que o texto do Jabor tende a se tornar novamente atual. É pagar (ou seria apagar) para ver
O apagão poderá nos trazer alguma luz
Arnaldo Jabor (Maio 2001)
Nossa ilusão de Primeiro Mundo falsificado caiu por terra.
Não tivemos guerra, não tivemos revolução, mas teremos o apagão.
O apagão vai ser uma porrada na nossa auto-estima, mas terá suas vantagens. Com o apagão, ficaremos mais humildes, como os humildes.
A grande onda narcisista da democracia liberal ficará mais cabreira, as gargalhadas das colunas sociais ficarão menos luminosas, nossas dentaduras menos brancas, nossos flashes menos gloriosos.
Baixará o astral das estrelas globais, dos grandes comedores, as bundas ficarão mais tímidas, os peitos de silicone menos arrebitados, ficaremos menos arrogantes dentro da escuridão que se abaterá em nossas vidas de classe média.
Há algo de castigo de Deus nesta porra toda, pois ficaremos mais parecidos com as periferias, para quem sempre houve o apagão de vidas e sonhos, haverá algo de becos escuros, de becos sem saída, de favelas tristes, haverá um baque em nosso egoísmo, nossas peruas e nossos cafajestes terão de maneirar um pouco.
A euforia de Primeiro Mundo falsificado cairá por terra e dará lugar a uma belíssima e genuína infelicidade. O Brasil se lembrará do passado agropastoril que teve e que, escondidamente, ainda tem; teremos saudades do matão, do luar do sertão, da Rádio Nacional, do acendedor de lampiões da rua, dos candeeiros, das lâmpadas de carbureto dos carrinhos de pipoca, lembraremos das tristes noites dos anos 40, como das noites dos blackouts da Segunda Guerra, mesmo sem os submarinos, sem navios alemães, apenas sinistros assaltantes nas esquinas apagadas.
O apagão nos lembrará dos velhos carnavais: "tomara que chova três dias sem parar." Ou: "Rio, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz!" Lembraremos dos velhos discos de 78 rpm, dos cantores com som precário, das TVs preto e branco, de um Brasil mais micha, mais pobre, cambaio, troncho, mas bem mais brasileiro em seu caminho da roça, que o Golpe de 64 interrompeu, que esta mania prostituída de Primeiro Mundo matou a tapa.
Há algo de maldição nisso tudo, castigo pela destruição de Sete Quedas, o preço a pagar pelos demônios ecológicos de Itaipu, de Tucuruí, do tal"Brasil potência", das grandes gorjetas, das represas, dos 50 bilhões de dólares de Angra 1 e 2, dos bilhões roubados nas grandes hidrelétricas arcaicas já na época em que se sabia da melhor utilidade das pequenas usinas e de outras fontes de energia.
Lembraremos de Geisel, de Médici, dos milicos que nos marcam a vida até hoje, nos entregando uma democracia de caixa quebrada, nos lembraremos também dos canalhas que pilharam o Tesouro, com sua fome de 20 anos, dos corruptos, das instituições vagabundas que nos ajudaram a falir, nos obrigando a um ajuste fiscal desumano, nos obrigando a uma governança miserável, sem desenvolvimento, sem projeto, limitada a arrumar as contas da falência.
O apagão nos mostra que somos subdesenvolvidos sim, que toda esta superestrutura de delírios modernizantes está em cima de pés de barro. O apagão é um upgrade nas periferias, nos "bondes do Tigrão", no mundo funk, nos lembrando da escuridão física e mental em que eles vivem, do lado de fora de nossas cercas e avenidas iluminadas.
O apagão nos fará mais pensativos, mais metafísicos, mais conscientes de nossa pequenez no mundo. Não temos terremotos e vulcão, mas temos apagão.
Seremos mais poéticos, olharemos as noites estreladas e pensaremos: "a solidão dos espaços infinitos nos apavora", como disse Pascal ou ainda, se mais líricos, recitaremos Victor Hugo: "a hidra-universo torce seu corpo cravejado de estrelas..."
O apagão nos fará pensar em Deus; não este "deus" das classes médias, da missa de domingo, sempre pedindo amor, saúde e dinheiro, nem do "deus" dos universais dos 10% para os bispos da TV, mas o Deus-natureza que tem uma vida própria, um ritmo seu, o Deus-universo que despreza nosso progresso dependente.
O apagão nos fará entender a vida dos flagelados do Nordeste, que sempre olharam o nosso lindo céu de anil como uma ameaça.
O apagão nos fará contemplar o azul sem nuvens, pois aprendemos o que a natureza é quando não obedecida e respeitada.
O apagão nos fará mais parcimoniosos, mais respeitosos, mais públicos, e acreditaremos menos nos arroubos de auto-suficiência.
O apagão vai dividir nossas vidas, de novo, em dia e noite. As noites e os dias serão nítidos, sem esta orgia de luzes que a modernidade celebra para nos fascinar como diamantes sobre o pano negro de sujeira, que nos fazem esquecer as cidades que, de perto, são feias e injustas.
Vai diminuir a féerie do capitalismo enganador.
Vamos dormir melhor com o apagão, talvez amemos mais a verdade dos dias e menos a mentira das noites...
Acabará a ilusão de clubbers e playboys que terão medo dos "manos" em cruzamentos negros e talvez o amor fique mais recolhido, mais sussurrado, mais trêmulo e desamparado.
Talvez o sexo se revalorize como prazer calmo e doce, talvez fique menos rebolante e voraz.
Talvez aumente a população, com a diminuição das diversões eletrônicas noturnas.
O apagão nos fará mais inseguros na rua mas, talvez, mais amigos dos lares e bares.
Estaremos de volta à nossa Idade da Pedra, aos fundos de caverna onde nós, macacos, nos protegíamos, mais solidários, com pavor das grandes feras.
Finalmente, o apagão nos fará mais perplexos, pois descobrimos que o Brasil é mais absurdo que pensávamos, pois nunca entenderemos como, com três agências cuidando da energia, o governo foi pego de surpresa por essas trevas tão longamente anunciadas.
Só nos resta o consolo de saber que, no fim, o apagão vai nos trazer alguma luz sobre quem somos.