Biblioteca da Aldeia
Fundamentalismos
Ter 12 Jun 2007 17:33 |
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- Categoria: Biblioteca
- Atualização: Terça, 12 Junho 2007 17:33
- Autor: Veríssimo
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NOVA YORK - O reverendo Jerry Falwell, um dos líderes da direita cristã americana, declarou que os Estados Unidos estão literalmente pagando pelos seus pecados com esta crise, uma maneira pouco sutil de dizer que Osama bin Laden - cuja culpa ou não nos atentados a esta altura é irrelevante, pois para os americanos se o inimigo não é ele é o que ele representa - faz o trabalho de Deus. A tolerância com o aborto e com os desvios sexuais teriam provocado a retribuição terrível. Os que pensam como Falwell são um extremo folclórico do conservadorismo americano, mas seu extremismo não se limita à pregação. Inclui ataques criminosos a clínicas de aborto e outras ações radicais, tudo em nome de uma verdade única, também expressa num texto sagrado como o Corão islâmico.
Timothy McVeigh, autor do maior número de mortes de uma só vez num atentado em território americano até a última terça-feira, só estava levando à sua conclusão lógica outro tipo de pensamento extremado, aliando ao fundamentalismo cristão. McVeigh contra-atacava um Estado que oprime o indivíduo, segundo textos tornados sagrados pelos seus co-ativistas de direita e que informaram a sua raiva. Também estava castigando os Estados Unidos pelos seus descaminhos. Completando a lógica de Falwell: a ira de Deus tem estranhos delegados.
Espanta muito a todos aqui o fato de os terroristas suicidas estarem, na sua maioria, vivendo há algum tempo nos Estados Unidos e nem assim terem abandonado seu fervor retributivo, como se o simples convívio com as amenidades americanas fosse desarmar seu fanatismo. Mas, dependendo de onde viessem, estariam expostos a alguma forma de retórica fundamentalista. Bonomia e big macs também convivem com o ódio. Se o cotidiano americano serviu para aumentar o fervor, não se sabe. Felizmente, a maioria americana não entende de fundamentalismos, pouco sabe do que o poder e a imposição americana representam no mundo e - apesar da atual mobilização emocional por algum tipo de vingança contra árabes, quaisquer árabes - quer viver em paz nos seus shopping malls, de preferência sem bombas. Ontem, reabriu a bolsa de Nova York, no que, para muita gente, foi uma cerimônia emocionante: o velho e bom fundamentalismo dos negócios, antes de tudo restabelecendo seu primado. Este, pelo menos, tem efeitos colaterais graves, mas menos gráficos.
Uma explicação: fui vítima da síndrome do papa, cujo protótipo é o correspondente que escreveu, um dia antes, que a aparição semanal do papa tinha transcorrido normalmente, mandou a matéria, foi viajar - e ouviu no dia seguinte que o papa tinha levado um tiro. Deixei várias colunas adiantadas enquanto viajava adivinha para onde? Os textos que mandei de Nova York foram publicados pelo Globo num caderno especial sobre os atentados, mas não foram distribuídos pela agência. Levando alguns dos meus 17 leitores a suspeitarem que eu estava num processo patológico de rejeição da realidade, o que não é o caso. Ainda.
O Estado de São Paulo - Terça-feira, 18 de setembro de 2001