Biblioteca da Aldeia

Uma viagem pelo tempo das certezas

Sab

25

Nov

2006


09:59

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O século 20 começou em 1º de janeiro de 1900 ou em 1º de janeiro de 1901? Muitas décadas se passaram até que os historiadores concluíssem que o século 19 só chegou ao fim em 1914, com a eclosão da 1ª Guerra. Por razões óbvias, em 1899 a dúvida não ia além de 1901, afinal escolhido, sem consenso, mas com larga margem de votos, como o ano em que, oficialmente, o século 20 teve início, por sinal, com festejos por toda parte. "Ontem, ao dobre da meia-noite, morreu o século XIX. São do século XX as primeiras claridades e os primeiros rumores do dia de hoje." Assim começava a matéria de primeira página do Estado, em 1º de janeiro de 1901.

Munch
Na tela 'O Grito', Munch traduziu a ambivalência do fim do século, de desespero e euforia

Festejos houvera no ano anterior, inclusive arremedos de missas do galo autorizadas pelo papa Leão XIII, mas sem um décimo da intensidade dos que marcariam a chegada do século 21 em janeiro de 2000. A vitória de 1901 sobre 1900 foi tranqüila, sobretudo porque avalizada por cronologistas e matemáticos mais convincentes que aqueles que um ano atrás, com base em idêntica argumentação, montaram uma inútil cruzada em favor de 2001. Há cem anos, os cientistas gozavam, em toda parte, de um prestígio sem precedentes.

E se eles, apoiados em cálculos e aparente bom senso, asseguravam que os anos que terminam com dois zeros ainda pertencem ao século anterior, não havia por que contradizê-los.

O prestígio da ciência, na virada do século passado, não foi obra de marketing, mas conseqüência de um alúvio de inventos fabulosos que, ao longo do século 19, deslumbraram o mundo e tornaram nossa vida mais duradoura e suportável, quando não mais prazerosa. Entre o estetoscópio (inventado em 1816) e o corn flakes (lançado em 1898), Angela Marques da Costa e Lilia Moritz Schwarcz relacionam, nas últimas páginas de 1890-1914 - No Tempo das Certezas, recém-editado pela Cia. das Letras, umas 60 invenções e descobertas que mudaram o rumo da ciência, da tecnologia e da história. Para o bem e para o mal.

Foi com a melhor das intenções que se pôs à disposição do homem a cocaína (em 1884) e a heroína (1898), e embora não se possa dizer o mesmo da metralhadora (1862) e da dinamite (1866), é justo lembrar que o inventor desta última (e de outros explosivos), o sueco Alfred Bernhard Nobel, além de pacifista militante, também deixou como legado o Prêmio Nobel. A luz elétrica que tantas maravilhas e confortos nos proporcionou, a partir de 1878, também matou muita gente (e não apenas na cadeira elétrica), assim como o automóvel e outros veículos viabilizados pela descoberta do motor à explosão.

Século XXI

Medo certos inventos de fato provocavam em pessoas inseguras, sugestionáveis e supersticiosas, mas não tanto quanto as profecias apocalípticas a que todo fim de século está sujeito e os cometas mais avantajados que da Terra tiravam fino, como o Biela (em novembro de 1899) e o Halley (em maio de 1910). O Biela fez um estrago dos diabos na psiquê coletiva. Dizia-se que com sua monstruosa cauda reduziria a pó o nosso planeta. No entanto, em sua passagem pela órbita terrestre, só fez por aqui uma vítima: uma portuguesa de 35 anos, residente no Rio - que morreu de susto.

Telégrafo, rádio, telefone, vários utensílios domésticos, fotografia, cinema, arranha-céus, elevadores, escadas rolantes, metrô, anestesia, penicilina, medidor de pressão arterial, papel higiênico, vaso sanitário com descarga automática, escova de dentes, creme dental, sabão em pó, refrigerantes gasosos, fogão a gás, aquecedor, refrigerador, sorvete, comida enlatada, cerveja engarrafada, Coca-Cola, aspirina, Sonrisal, caixa registradora - tudo isso e muito mais nos trouxe o "tempo das certezas". Nem sempre sob aplausos unânimes. Lorde Kelvin, físico da Real Sociedade Britânica de Ciência, acusou de "mistificação" o raio X que o alemão Wilhelm von Roentgen inventou em 1895. O professor Erasmus Wilson, outro inglês (seria despeito?), disse que a luz elétrica nada mais era que um truque da Exposição Internacional de Paris.

A Exposição de Paris de 1900 foi o zênite de sua espécie, a grande feira mundial do fin-de-siècle e da belle époque, a suprema celebração dos milagres da eletricidade, o maior display dos dois principais símbolos da época (a luz e a velocidade) e dos mais ambiciosos desejos da burguesia industrial, um trailer do Epcot Center. Inaugurada em 14 de abril, custou 11 vezes mais que a exposição anterior, montada em 1895, e vendeu ao mundo um futuro onírico e idealizado, pleno de abundância, paz, alegria e ilusões. O Brasil, naturalmente, fez-se presente, já que desde 1862 não perdia nenhuma dessas megamostras de progresso e utopia, aonde sempre ia promover seus produtos industrializados e, acima de tudo, suas matérias-primas e seu exotismo. Nisso fomos pioneiros na América Latina, petulância quiçá explicável pelo maior número de inventores (com e sem aspas) que nestas paragens vicejaram. Santos Dumont foi apenas o mais célebre deles; aliás, merecidamente.

Landell de Moura Landell de Moura

Em 1893, o padre Landell de Moura realizou as primeiras transmissões de sinais telegráficos e da voz humana em telefonia sem fio do mundo, entre a Avenida Paulista e o alto de Santana. Santos Dumont, diga-se, não foi sequer o único brasileiro a competir com Ícaro. Estróinas hoje esquecidos, como Gastão Galhardo, José Passos Faria e Emilio Guimarães, também tentaram voar a bordo de algo bem mais pesado que o ar. Para não falar de José do Patrocínio, o renomado abolicionista e novidadeiro, que em 1903, dois anos depois de importar o primeiro automóvel que as esburacadas ruas do Rio levaram à retífica, meteu-se a construir em vão um dirigível, o Aerostato Santa Cruz, com os préstimos ao alcance do poeta Olavo Bilac, hilariante aventura que serviu de Leitmotiv para a novela Bilac Vê Estrelas, de Ruy Castro, lançada esta semana pela Companhia das Letras.

Além de "esbanjar" inventores - a maioria com aspas e constante alvo de chacotas, como as que o caricaturista J. Carlos adorava fazer, inventando máquinas de "pentear macaco" e "lamber sabão" - vivíamos, desde o Império, a fantasia da belle époque, de uma falsa Idade de Ouro, que só foi bela e de ouro para uma classe privilegiada. Em 1911, um jornalista francês, Edouard Hersey, que fizera a cobertura da Exposição de 1900, desabafou: "Ignoro quem imaginou pela primeira vez batizar de belle époque o período de alguns anos que circundam o milésimo de 1900 (...) É pouco provável que tal criatura chegasse a medir a crueldade da expressão. A gente de hoje não conseguirá fazer idéia dos abismos de miséria que se escondiam na Paris brilhante daquele tempo."

No que talvez seja o melhor livro não acadêmico sobre os primeiros 14 anos do século 20, A Torre do Orgulho (Paz e Terra), Barbara Tuchman desqualifica, de saída, a expressão belle époque e a imagem de confiança, inocência, conforto, estabilidade, segurança e paz associada àquele período.

Essas qualidades decerto estavam presentes, pondera Barbara, mas nem todo mundo era inocente, esperançoso e confiante nos valores daquela época.

Muitos tinham dúvidas e receios, outros ódio e indignação, os habituais fermentos de levantes e guerras, que, aliás, não cessaram de ocorrer nos primeiros anos do século 20 (nos mares da China e do Japão, no Caribe, nos Bálcãs, na Áfrical do Sul), culminando com o conflito deflagrado pelo assassinato do arquiduque Ferdinando, a que deram o nome, nada gratuito, de Grande Guerra.

Quando, há cem anos, um novo século despontou na folhinha, depositamos um exagero de confiança na modernidade da República, como se ela tivesse o condão de nos livrar, integralmente, da "letargia da monarquia" e apagar de nossa memória a vergonha de termos sido o último país a abolir a "barbárie da escravidão". Continuamos, no novo regime, atrelados aos mesmos modismos culturais, comportamentais e até urbanísticos importados da França quando os Orleãs e Bragança ainda davam as ordens por aqui.

Foi nos planos de modernização de Paris, traçados pelo barão Haussman (ruas e avenidas largas para dificultar barricadas dos novos e futuros sans-culottes), que se inspirou o "bota abaixo" comandado pelo prefeito do Rio Pereira Passos, Blitzkrieg civilizatório e higienizante contra cortiços e favelas, para tornar a cidade "uma vitrine para a captação dos interesses estrangeiros". São Paulo também teve o seu Pereira Passos na figura de Antônio da Silva Prado, seu primeiro prefeito, empossado em 1899. Em sua gestão, ruas e mais ruas foram abertas, velhas estradas ganharam prolongamentos e 11 mil novos prédios brotaram em vários pontos da cidade, o que a deixou "mais digna" das potencialidades cafeeiras do Estado.

Um ano antes de Silva Prado tomar posse, o já eleito presidente Campos Salles foi bater às portas dos Rothschilds, em Londres, atrás de recursos para equilibrar as combalidas finanças nacionais. Entre 1889 e 1898, o mil réis passara a valer menos 73% em relação à libra esterlina, que era o dólar da época, assim como os Rothschilds eram o FMI da belle époque. Salles conseguiu um empréstimo de 10 milhões de libras para o imediato pagamento dos juros. O Tesouro foi salvo, mas a economia brasileira tubulou, com falências e desempregos em quase todos os seus segmentos. Até que foi pouca a vaia que Salles levou dos cariocas depois de passar a faixa presidencial a Rodrigues Alves, em novembro de 1902.

Que ninguém exagere nas comparações daquela époque com a que vivemos. Malgré tout, aquela era bem melhor. Pelo menos do ponto de vista cultural. Basta dizer que os autores estrangeiros mais vendidos aqui, na virada do século, eram Victor Hugo e Emile Zola. E lembrar que 1900 foi o ano em que chegou às livrarias a primeira edição de Dom Casmurro.

Autoria

SÉRGIO AUGUSTO para o Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo no Domingo, 10 de dezembro de 2000.

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